quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Acerca do infame artigo do sr. José António Saraiva ou Pelos vistos ainda temos muito sutiã que queimar

Encontrei um comentário a este artigo enquanto navegava entre blogues numa pausa. A autora de um blogue publicou um excerto do dito texto, que comecei a ler como se de um artigo irónico se tratasse. Tenho vivido numa toca nestes meses - os russos bem nos podem sobrevoar que só sei disso 4 dias depois - pelo que não me apercebi logo que estava a ler um artigo de opinião publicado no jornal Sol... 
Quando li o artigo na íntegra fiquei apática. Nem raiva consegui sentir. Apenas tristeza. É tão triste que haja alguém que ainda pense assim, principalmente tendo esse  “alguém” acesso a um órgão de comunicação social!
E mais! Ser o próprio director!
É triste. E ridículo.
No fundo, o sr. Saraiva faz uma “análise social” a uma qualquer crise familiar dos dias de hoje, apontando a emancipação feminina como a causa disso. Como se divórcio, a toxicodependência, o suicídio e o diabo a quatro fossem consequências de as mulheres saírem de casa para trabalhar! E chegarem a casa “estafadas”, e resmungarem com os maridos e não darem atenção aos filhos, que coitadinhos “têm de ir” para a escola, porque a mãe já não fica em casa com eles, e no meio daquilo, elas querem é ficar a falar com os colegas de trabalho até às tantas e cometer adultério. Tudo isto é, segundo o “sôtor”, culpa do movimento feminista.
Antes de mais, acho que o que este senhor escreveu está desfasado da realidade. Devia ter lido uns estudos, ou no mínimo consultado a Wikipédia primeiro, ou ter falado com algumas pessoas da idade dele para perceber que isso da mulher sair de casa para trabalhar já não é novo. Ou sou eu que vivo noutro mundo, ou o sr. vive dentro de uma bolha, como acontece a tanta gente que nasce em berço de ouro.
Ou sou eu que sou um bicho raro, descendente de uma longa linhagem de mulheres que também se esfalfavam a trabalhar para por o pão na mesa. Fosse na agricultura ou como operárias, ou até a costurar roupa de outros, essas mulheres também trabalhavam, e não ficavam em casa a tratar só de tarefas domésticas e dos filhos. Os filhos, esses, aliás, iam sendo criados por irmãos mais velhos ou outras miudinhas, e assim que largassem fraldas também iam trabalhar.

   "As Respigadoras", J. F. Millet, sec. XIX

Não era qualquer franja da sociedade que se podia dar ao luxo de manter a mulher em casa. E muitas vezes, tal como hoje acontece, se ela estava em casa, era porque o marido não a deixava sair de lá – muitas vezes tal é acompanhado de violência física e psicológica. Violência!!!
Por isso, em primeiro lugar não percebo porque é que o “sôtor” associou que a mulher só saiu de casa para trabalhar a partir do movimento feminista e da emancipação feminina quando há séculos que tal acontece…
Em segundo lugar, a forma incomodada como apresenta o feminismo cheira a mofo. Queimaram-se sutiãs e cortou-se o cabelo? Também ouvi dizer que houve sufragistas quem apresentaram o buço à laia de bigode com orgulho. No entanto, cá para mim, o movimento – ou movimentos - não tinham o objctivo de transformar a mulher em homem, como o Saraiva refere algures. Tinham como objectivo elevar a mulher à categoria digna de “ser humano”, dar-lhe direitos e oportunidades equalitárias.


Acho que este sr. devia ter estudado melhor o tema, ao invés de dar apenas ouvidos ao pai. Meia população portuguesa ficou com a ideia de que o seu progenitor, apesar do seu bom gosto literário, e de, “até” gostar de Lídia Jorge, feminista, ser o chefe de família lá de casa e assim é que Deus manda. Porque, pelos vistos, os homens só seguem o discernimento do próprio pai, segundo a seguinte passagem do artigo: 

"As mulheres chegam a casa estafadas ao fim do dia de trabalho, não tendo paciência para os filhos nem para fazer nada. Muitos maridos protestam – e elas reclamam (justamente) com eles por não ajudarem. Só que os homens resistem, pois nunca viram os seus pais dividir as tarefas caseiras."

Então mas os homens não pensam por si? Regem-se apenas pelo que o pai faz? E os homens que cozinham em casa, e os que ajudam a mantê-la limpa, e que mudam fraldas? São uns “desviados”?
Francamente…
Como se não bastasse todas esta baboseira, o “sôtor” identifica uma passagem de uma entrevista a Lídia Jorge, em que a escritora relembra com nostalgia a infância, com a nostalgia por aquele “paraíso” perdido, onde o marido é rei e senhor da casa, e a mulher está lá, a deixar o cenário limpo e a tratar dos gaiatos. Lembram-se daquela imagem que figura nos livros de História, quando estudamos o Estado Novo?


Mais um pouco e sente saudades da PIDE e defende que se retire o direito de voto às mulheres…
E depois, ainda tem o descaramento de perguntar se as mulheres de hoje são felizes! Mas não são as mulheres um ser humano, dotadas de liberdade de escolha? Não são as mulheres, como ser humano que são, todas diferentes? Decerto que as mães e donas de uma casa que saem para trabalhar durante a semana lhe respondem que sim, que sentem felizes, que sentem completas e realizadas. Do mesmo modo, que as que escolhem ficar em casa lhe respondem que sim, que são felizes, que se sentem completas e realizadas. E as que são solteiras e vivem felizes no T0. E as que não são mães e as que são.

Como é que ainda é possível um homem sentir-se chocado por uma mulher ambicionar ter um emprego, ou subir na carreira? É assim tão repugnante?
Será este o velho discurso que cheira a bafio e peúgas húmidas que defende que cada ser humano deve seguir a sua natureza? Que a única ambição da mulher é ser “mãe”? E “cuidar do marido”, seja lá o que isso signifique? Já agora, porque não defende que nos devemos reger apenas pelas tarefas que nos eram destinadas na Pré-História? É que se seguirmos por aí, acho que mais valia este “sôtor” levantar o rabinho da cadeira e ir caçar mamutes…

A conversa já vai longa e ainda há muito a dizer. No fundo, tenho pena deste homem, e dos que seguem esta mentalidade atrofiada e retorcida. São a prova de que mesmo na sociedade ocidental ainda há um longo caminho a percorrer para que homens e mulheres sejam vistos como iguais.
Só espero que este artigo levante mais polémica que a mudança de cara da “Bridget Jones” ou as curvas da Athayde, porque palavras daquelas, são perigosas, e esquecemo-nos com facilidade que a mulher não é julgada apenas pelos fundamentalistas islâmicos. Pelos vistos ainda temos que queimar muito sutiã para que seja inadmissível ler daquilo num órgão de comunicação social.





9 comentários:

  1. Engraçado, devemos ter lido o mesmo excerto porque eu também pensei que se tratava de uma ironia.... Acabei por não ir ler o artigo original para não me fazer rugas, mas se ganhar coragem ainda lá vou.

    É isto mesmo, sem tirar nem por. É triste que em pleno século XXI ainda haver este tipo de polémicas. Se eramos mais felizes quando ficávamos em casa a limpar e a cuidar dos filhos? Julgo que nessa altura uma mulher não passa de um corpo quente com quem um homem partilhava a cama. E depois de lhes tratarmos da roupa, da comida, daquilo que já se sabe muitas vezes nem respeito por nós tinham... OH sim, eramos muito felizes.

    Às vezes acho que algumas pessoas só escrevem artigos para gerar polémica e terem 5 minutos de fama. Deve ter sido o caso deste senhor....

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    1. Toma coragem e vai... Sim, de certeza que foi o mesmo post. Eu estou a gerar a teoria de que a mulher o deixou e o tipo está saudoso do tempo em que o divorcio era proibido porque agora não tem quem lhe trate da roupa. :p então não é? Nunca pensei que ainda hoje se pusesse em causa a nossa liberdade... Enfim...

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    2. Sim, se calhar o problema é esse. Mas não faz mal, a minha mãe tem uma lavandaria e agradeçe mais um cliente ou outro. Se calhar vou enviar-lhe um cartão com o contacto. Enfim, gente frustrada....

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    3. Ahahah acho que sim, era uma boa ideia...

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  2. Olá,

    Realmente e triste, sim porque infelizmente isto é apenas uma gota de àgua no oceano, ainda temos que evoluir muito para que isto melhore em muitos aspetos e este é um deles, pessoas com este tipo de mentalidade não faltam, mas temos que continuar a lutar para que isto deixe de acontecer, não se pode baixar armas é lutar e manter a esperança que a sociedade evolua.

    Manter a esperança, sempre :)

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    1. Saudações, fiacha! É bom ter aqui uma opinião masculina em relação a este assunto :D pois, pelos vistos ainda temos muito que lutar..
      Ainda por cima numa época em que há tanto problema a resolver, desde doenças sem cura aparente a alterações climatéricas, nem devíamos continuar a debater uma qualquer "guerra dos sexos". Enfim...
      Vamos mantê-la! :D

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    2. Já viste o discurso da Emma Watson?

      https://www.youtube.com/watch?v=p-iFl4qhBsE

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    3. Tenho que o ver. Ouvi falar dele só através do tal post da Jessica Athayde (chego atrasada a td, para variar...)

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    4. O que importa é que chegues. Vê o discurso, está muito fixe

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