Encontrei um
comentário a este artigo enquanto navegava entre blogues numa
pausa. A autora de um blogue publicou um excerto do dito texto, que comecei a
ler como se de um artigo irónico se tratasse. Tenho vivido numa toca nestes
meses - os russos bem nos podem sobrevoar que só sei disso 4 dias depois - pelo
que não me apercebi logo que estava a ler um artigo de opinião publicado no jornal Sol...
Quando li o
artigo na íntegra fiquei apática. Nem raiva consegui sentir. Apenas tristeza. É
tão triste que haja alguém que ainda pense assim, principalmente tendo esse “alguém” acesso a um órgão de comunicação
social!
E mais! Ser o próprio director!
É triste. E
ridículo.
No fundo, o sr.
Saraiva faz uma “análise social” a uma qualquer crise familiar dos dias de
hoje, apontando a emancipação feminina como a causa disso. Como se divórcio, a toxicodependência,
o suicídio e o diabo a quatro fossem consequências de as mulheres saírem de
casa para trabalhar! E chegarem a casa “estafadas”, e resmungarem com os
maridos e não darem atenção aos filhos, que coitadinhos “têm de ir” para a
escola, porque a mãe já não fica em casa com eles, e no meio daquilo, elas
querem é ficar a falar com os colegas de trabalho até às tantas e cometer adultério.
Tudo isto é, segundo o “sôtor”, culpa do movimento feminista.
Antes de
mais, acho que o que este senhor escreveu está desfasado da realidade. Devia
ter lido uns estudos, ou no mínimo consultado a Wikipédia primeiro, ou ter
falado com algumas pessoas da idade dele para perceber que isso da mulher sair
de casa para trabalhar já não é novo. Ou sou eu que vivo noutro mundo, ou o sr.
vive dentro de uma bolha, como acontece a tanta gente que nasce em berço de
ouro.
Ou sou eu
que sou um bicho raro, descendente de uma longa linhagem de mulheres que também
se esfalfavam a trabalhar para por o pão na mesa. Fosse na agricultura ou como
operárias, ou até a costurar roupa de outros, essas mulheres também
trabalhavam, e não ficavam em casa a tratar só de tarefas domésticas e dos
filhos. Os filhos, esses, aliás, iam sendo criados por irmãos mais velhos ou
outras miudinhas, e assim que largassem fraldas também iam trabalhar.
"As Respigadoras", J. F. Millet, sec. XIX
Não era
qualquer franja da sociedade que se podia dar ao luxo de manter a mulher em
casa. E muitas vezes, tal como hoje acontece, se ela estava em casa, era porque
o marido não a deixava sair de lá – muitas vezes tal é acompanhado de violência
física e psicológica. Violência!!!
Por isso, em
primeiro lugar não percebo porque é que o “sôtor” associou que a mulher só saiu de casa para trabalhar a partir do movimento feminista e da emancipação
feminina quando há séculos que tal acontece…
Em segundo
lugar, a forma incomodada como apresenta o feminismo cheira a mofo.
Queimaram-se sutiãs e cortou-se o cabelo? Também ouvi dizer que houve sufragistas
quem apresentaram o buço à laia de bigode com orgulho. No entanto, cá para mim,
o movimento – ou movimentos - não tinham o objctivo de transformar a mulher em
homem, como o Saraiva refere algures. Tinham como objectivo elevar a mulher à
categoria digna de “ser humano”, dar-lhe direitos e oportunidades equalitárias.
Acho que
este sr. devia ter estudado melhor o tema, ao invés de dar apenas ouvidos ao
pai. Meia população portuguesa ficou com a ideia de que o seu progenitor,
apesar do seu bom gosto literário, e de, “até” gostar de Lídia Jorge,
feminista, ser o chefe de família lá de casa e assim é que Deus manda. Porque,
pelos vistos, os homens só seguem o discernimento do próprio pai, segundo a seguinte
passagem do artigo:
"As mulheres chegam a casa estafadas ao fim do dia de trabalho, não tendo paciência para os filhos nem para fazer nada. Muitos maridos protestam – e elas reclamam (justamente) com eles por não ajudarem. Só que os homens resistem, pois nunca viram os seus pais dividir as tarefas caseiras."
Então mas os
homens não pensam por si? Regem-se apenas pelo que o pai faz? E os homens
que cozinham em casa, e os que ajudam a mantê-la limpa, e que mudam fraldas?
São uns “desviados”?
Francamente…
Como se não
bastasse todas esta baboseira, o “sôtor” identifica uma passagem de uma entrevista
a Lídia Jorge, em que a escritora relembra com nostalgia a infância, com a
nostalgia por aquele “paraíso” perdido, onde o marido é rei e senhor da casa, e
a mulher está lá, a deixar o cenário limpo e a tratar dos gaiatos. Lembram-se
daquela imagem que figura nos livros de História, quando estudamos o Estado Novo?
Mais um
pouco e sente saudades da PIDE e defende que se retire o direito de voto às
mulheres…
E depois,
ainda tem o descaramento de perguntar se as mulheres de hoje são felizes! Mas não
são as mulheres um ser humano, dotadas de liberdade de escolha? Não são as
mulheres, como ser humano que são, todas diferentes? Decerto que as mães e
donas de uma casa que saem para trabalhar durante a semana lhe respondem que
sim, que sentem felizes, que sentem completas e realizadas. Do mesmo modo, que
as que escolhem ficar em casa lhe respondem que sim, que são felizes, que se
sentem completas e realizadas. E as que são solteiras e vivem felizes no T0. E
as que não são mães e as que são.
Como é que
ainda é possível um homem sentir-se chocado por uma mulher ambicionar ter um
emprego, ou subir na carreira? É assim tão repugnante?
Será este o
velho discurso que cheira a bafio e peúgas húmidas que defende que cada ser
humano deve seguir a sua natureza? Que a única ambição da mulher é ser “mãe”? E
“cuidar do marido”, seja lá o que isso signifique? Já agora, porque não defende
que nos devemos reger apenas pelas tarefas que nos eram destinadas na
Pré-História? É que se seguirmos por aí, acho que mais valia este “sôtor” levantar
o rabinho da cadeira e ir caçar mamutes…
A conversa
já vai longa e ainda há muito a dizer. No fundo, tenho pena deste homem, e dos
que seguem esta mentalidade atrofiada e retorcida. São a prova de que mesmo na sociedade
ocidental ainda há um longo caminho a percorrer para que homens e mulheres
sejam vistos como iguais.
Só espero
que este artigo levante mais polémica que a mudança de cara da “Bridget Jones”
ou as curvas da Athayde, porque palavras daquelas, são perigosas, e
esquecemo-nos com facilidade que a mulher não é julgada apenas pelos
fundamentalistas islâmicos. Pelos vistos ainda temos que queimar muito sutiã
para que seja inadmissível ler daquilo num órgão de comunicação social.