quarta-feira, 26 de novembro de 2014

"Os Pilares do Mundo", Anne Bishop


Antes de mais deixem-me avisar que tenho uma relação de amor-ódio com os romances de Anne Bishop. A sinopse pisca-me sempre o olho, acabo por comprar o primeiro da trilogia, acho piada ao mundo/reino onde a acção se desenrola, adoro a forma como a autora consegue criar uma atmosfera própria, mas as personagens não me cativam o suficiente para continuar a ler os outros livros.
Acho que é agora que tenho de me esconder atrás do muro antes de se apedrejada… Perdoem-me fãs das personagens da Anne Bishop!
Foi com algum receio que comecei a ler os "Pilares do Mundo". Ainda por cima parecia que ia encontrar algumas semelhanças com o ciclo "As Brumas de Avalon" criado pela querida Marion Zimmer Bradley – ah, que saudades da Morgaine! – já que abordava o sagrado feminino e o respeito pela natureza.
Adorei a atmosfera do livro e o universo criado, claro, mas demorei algum tempo até me entusiasmar realmente com a leitura. Primeiro não estava a ver onde é que a linha de acção iria levar. Fomos apresentados à maldade do Inquisidor-Mor, que não quer deixar nenhuma bruxa (ou nenhuma mulher) viva nesta terra e aos Fae, os Senhores que comandam forças e animais (ou melhor dizendo, uns tipos arrogantes que vivem descansados em Tir Alain e só visitam a terra para comer/ter aventuras com alguma tipa que se cruza pelo caminho e só se preocupam quando o seu adorado mundo começa a desaparecer - literalmente). E somos apresentados à querida protagonista, Ari, uma bruxa simpática que é mal vista na aldeia e teve um “crush” pelo tipo erradíssimo.
Quando Lucien, o Senhor do Fogo Fae, entrou em cena revirei muitas vezes os olhos e, pela primeira vez, adorei que existisse um triângulo amoroso. Odiei a arrogância de Lucien...
A minha personagem favorita acabou por ser a Ceifeira, uma Fae adorável que é vista pelos outros sempre com algum receio, ou não estivesse responsável por colher as almas. É uma personagem curiosa e arguta e acho que influenciou parte da minha opinião positiva do livro.
No entanto, li-o com muito gosto. Foi fantástico descobrir que ligação havia entre Fae e bruxas, ou entre outras personagens. Houve revelações que me apanharam de surpresa.
Além disso, apresenta-nos mais um Reino fantástico criado por Anne Bishop, onde ainda há quem saiba que a Mãe Terra merece ser respeitada, que somos todos filhos dela. Tem umas boas mensagens não só sobre o sagrado feminino, como até sobre ecologia. Mais uma vez a autora perpassou alguma da nossa realidade para lá, deste o desrespeito pela natureza ao desrespeito pela mulher. A mulher que no livro é apontada pelo Inquisidor como fraca, pouco inteligente, apenas um objecto a ser manuseado pelo homem; a mulher apontada como um ser dado à luxúria para tirar o homem do seu bom caminho; como um ser susceptível de ser manipulado pelo Mal. Nada que, infelizmente, não continue a ocorrer… Enfim.
Portanto, faço uma vénia a Anne Bishop pelas mensagens transmitidas no livro e pela história que me conseguiu agarrar. Esta trilogia vou ler. E talvez volte a tentar ler as outras.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

"O Carteiro de Pablo Neruda", Antonio Skármeta


Li este livrinho em horas, de tão entusiasmada que fiquei. Não estava à espera de gostar tanto. Centra-se na relação de amizade entre o carteiro da Isla Negra, Mario, um rapazote, e o único habitante da ilha que recebe correspondência, Pablo Neruda, o poeta.
Amizade que se forma quando o rapaz se apaixona por Beatriz e deseja escrever-lhe poesia para poder aproximar-se dela – já que a mãe da miúda é uma megera. A amizade que Mario e Pablo encetam através dos seus esforços para conquistar Beatriz é realmente ternurenta.
Antes de prosseguir, deixem-me avisar: à boa moda dos livros de escritores latino-americanos, nesta obra qualquer acontecimento toma ares de lenda! E isso é delicioso…
A história é baseada em factos verídicos, e torna-se angustiante quando a política mete a patinha e somos levados até àquele final. Gostava de ter sabido o que aconteceu a Mario na realidade - ou talvez prefira não saber.
Só tenho a apontar uma coisa, que nem deve ser erro do Skármeta ou do tradutor, mas das letras gigantes da edição que li: há frases que tão longas que se estendem pela página e me perdi.
À parte isso, e voltando ao que interessa, só tenho que recomendar O Carteiro de Pablo Neruda. É especial. Relata momentos especiais, como quando lemos/ouvimos a gravação que Mario envia a Pablo, sediado em Paris e com tantas saudades da ilha que lhe envia um gravador para que registe o que o faz sentir em casa. É um livro com uma história de amor e amizade e, no fundo, pareceu-me um hino ao próprio Mario.

Para recomendar, sem dúvida.
 

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

"Em Busca do Carneiro Selvagem", Haruki Murakami


Em Busca do Carneiro Selvagem, de Haruki Murakami, foi um dos primeiros livros do escritor. Sou fã e, como todos os fãs de Murakami, é quase impossível falar apenas de um livro. O escritor japonês tende a inserir sempre certos elementos nos seus livros e isso é fantástico! Eu e a S Pinelli, já falámos disso no Delícias à Lareira, caso estejam interessados em dar uma olhadela. Basta um clique.
 
Foquemo-nos, então, apenas neste livro, por agora. Sendo um dos primeiros, a informação é nos dada com mais detalhe; é tudo mais explícito, mais palpável. No entanto, senti-me um pouco perdida enquanto lia o livro. Parecia que nada fazia sentido. Porque iria uma organização embirrar com uma foto de uma paisagem com carneiros? E o que tem de tão especial o carneiro com um estrela no dorso? E porque foi a tal foto enviado pelo Rato, o amigo de infância do narrador/protagonista?
No fundo, tal como em “Moby Dick”, de Herman Melville, é a busca por um animal especial que vai dar o mote à acção. Será também a busca do protagonista por si próprio, talvez?
E no fim, o que fica?
Leiam o livro e depois expliquem-me também as vossas teorias…
 
 
Em relação aos elementos “murakamianos, apenas o narrador foge à regra. O protagonista causa alguma estranheza. Apesar de se caracterizar a si próprio como uma pessoa desinteressante e aborrecida, consegue ter uma visão aparentemente irónica do que a rodeia. Também se divorcia da mulher, o que escapa aos típicos protagonistas deste escritor. Normalmente é o pai que se divorcia e que sofre com a traição da mulher.
Os restantes elementos, ou parte dos que identificamos, estão lá:
- ouve-se música jazz;
- o narrador faz-se acompanhar por um livro. Sendo este um romance detectivesco, não será de estranhar que esteja a ler “As Aventuras de Sherlock Holmes”;
- uma das personagens tem problemas de relacionamento com o próprio pai, sentindo-se humilhada e rebaixada por ele, um pouco à semelhança de “Kafka à Beira Mar” e “1Q84”;
- há uma namorada com uma personalidade única e um dom peculiar – uma personagem amorosa, deixem-me comentar;
- fala-se sobre suicídio. Este também é um tema recorrente do autor, o que leva à teoria de, em certo ponto da sua vida, terá sofrido com a perda de um amigo que suicidou. Já em “Norwegian Wood” se foca nisso;
- existe um Líder Supremo, que está a morrer. Lembrei-me logo do Líder da seita em “1q84” e de Jonny Walker de “Kafka à Beira Mar”;
- existe um gato! Mas só a meio da acção é que recebe nome, sequer;
- também se fala sobre o cristianismo, algures;
- personagens desaparecem e reaparecem mudadas – “claro!”, oiço os fãs exclamar;
- uma “entidade” pretende mudar o mundo, um bocadinho à semelhança do Povo Pequeno de “1q84”;
- a sensação de irrealidade e a referência a um mundo paralelo – a que o protagonista apelida de “mundo dos vermes”, onde as “vacas procuram tenazes” – permeia o livro. Não terá o protagonista entrado para uma outra realidade?
Sobre este último ponto, que tanto me fascina, destaco uma passagem sobre o reflexo do protagonista no espelho que ilustra este “elemento”. É deliciosa! Saquem dos vossos volumes e naveguem até à pag. 336…
 
De “Em Busca do Carneiro Selvagem”, não posso dizer que é o meu preferido do autor, até porque fica um tanto aquém de “Kafka à Beira Mar” ou da trilogia “1q84”. No entanto, acho que é sempre positivo lermos as primeiras obras de um escritor de que gostamos e poder observar a sua evolução. E foi mais uma vez uma boa experiência de leitura surreal. Recomendo-o!
E vocês, caros seguidores, já o leram? O que acharam?
Boas leituras!

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Acerca do infame artigo do sr. José António Saraiva ou Pelos vistos ainda temos muito sutiã que queimar

Encontrei um comentário a este artigo enquanto navegava entre blogues numa pausa. A autora de um blogue publicou um excerto do dito texto, que comecei a ler como se de um artigo irónico se tratasse. Tenho vivido numa toca nestes meses - os russos bem nos podem sobrevoar que só sei disso 4 dias depois - pelo que não me apercebi logo que estava a ler um artigo de opinião publicado no jornal Sol... 
Quando li o artigo na íntegra fiquei apática. Nem raiva consegui sentir. Apenas tristeza. É tão triste que haja alguém que ainda pense assim, principalmente tendo esse  “alguém” acesso a um órgão de comunicação social!
E mais! Ser o próprio director!
É triste. E ridículo.
No fundo, o sr. Saraiva faz uma “análise social” a uma qualquer crise familiar dos dias de hoje, apontando a emancipação feminina como a causa disso. Como se divórcio, a toxicodependência, o suicídio e o diabo a quatro fossem consequências de as mulheres saírem de casa para trabalhar! E chegarem a casa “estafadas”, e resmungarem com os maridos e não darem atenção aos filhos, que coitadinhos “têm de ir” para a escola, porque a mãe já não fica em casa com eles, e no meio daquilo, elas querem é ficar a falar com os colegas de trabalho até às tantas e cometer adultério. Tudo isto é, segundo o “sôtor”, culpa do movimento feminista.
Antes de mais, acho que o que este senhor escreveu está desfasado da realidade. Devia ter lido uns estudos, ou no mínimo consultado a Wikipédia primeiro, ou ter falado com algumas pessoas da idade dele para perceber que isso da mulher sair de casa para trabalhar já não é novo. Ou sou eu que vivo noutro mundo, ou o sr. vive dentro de uma bolha, como acontece a tanta gente que nasce em berço de ouro.
Ou sou eu que sou um bicho raro, descendente de uma longa linhagem de mulheres que também se esfalfavam a trabalhar para por o pão na mesa. Fosse na agricultura ou como operárias, ou até a costurar roupa de outros, essas mulheres também trabalhavam, e não ficavam em casa a tratar só de tarefas domésticas e dos filhos. Os filhos, esses, aliás, iam sendo criados por irmãos mais velhos ou outras miudinhas, e assim que largassem fraldas também iam trabalhar.

   "As Respigadoras", J. F. Millet, sec. XIX

Não era qualquer franja da sociedade que se podia dar ao luxo de manter a mulher em casa. E muitas vezes, tal como hoje acontece, se ela estava em casa, era porque o marido não a deixava sair de lá – muitas vezes tal é acompanhado de violência física e psicológica. Violência!!!
Por isso, em primeiro lugar não percebo porque é que o “sôtor” associou que a mulher só saiu de casa para trabalhar a partir do movimento feminista e da emancipação feminina quando há séculos que tal acontece…
Em segundo lugar, a forma incomodada como apresenta o feminismo cheira a mofo. Queimaram-se sutiãs e cortou-se o cabelo? Também ouvi dizer que houve sufragistas quem apresentaram o buço à laia de bigode com orgulho. No entanto, cá para mim, o movimento – ou movimentos - não tinham o objctivo de transformar a mulher em homem, como o Saraiva refere algures. Tinham como objectivo elevar a mulher à categoria digna de “ser humano”, dar-lhe direitos e oportunidades equalitárias.


Acho que este sr. devia ter estudado melhor o tema, ao invés de dar apenas ouvidos ao pai. Meia população portuguesa ficou com a ideia de que o seu progenitor, apesar do seu bom gosto literário, e de, “até” gostar de Lídia Jorge, feminista, ser o chefe de família lá de casa e assim é que Deus manda. Porque, pelos vistos, os homens só seguem o discernimento do próprio pai, segundo a seguinte passagem do artigo: 

"As mulheres chegam a casa estafadas ao fim do dia de trabalho, não tendo paciência para os filhos nem para fazer nada. Muitos maridos protestam – e elas reclamam (justamente) com eles por não ajudarem. Só que os homens resistem, pois nunca viram os seus pais dividir as tarefas caseiras."

Então mas os homens não pensam por si? Regem-se apenas pelo que o pai faz? E os homens que cozinham em casa, e os que ajudam a mantê-la limpa, e que mudam fraldas? São uns “desviados”?
Francamente…
Como se não bastasse todas esta baboseira, o “sôtor” identifica uma passagem de uma entrevista a Lídia Jorge, em que a escritora relembra com nostalgia a infância, com a nostalgia por aquele “paraíso” perdido, onde o marido é rei e senhor da casa, e a mulher está lá, a deixar o cenário limpo e a tratar dos gaiatos. Lembram-se daquela imagem que figura nos livros de História, quando estudamos o Estado Novo?


Mais um pouco e sente saudades da PIDE e defende que se retire o direito de voto às mulheres…
E depois, ainda tem o descaramento de perguntar se as mulheres de hoje são felizes! Mas não são as mulheres um ser humano, dotadas de liberdade de escolha? Não são as mulheres, como ser humano que são, todas diferentes? Decerto que as mães e donas de uma casa que saem para trabalhar durante a semana lhe respondem que sim, que sentem felizes, que sentem completas e realizadas. Do mesmo modo, que as que escolhem ficar em casa lhe respondem que sim, que são felizes, que se sentem completas e realizadas. E as que são solteiras e vivem felizes no T0. E as que não são mães e as que são.

Como é que ainda é possível um homem sentir-se chocado por uma mulher ambicionar ter um emprego, ou subir na carreira? É assim tão repugnante?
Será este o velho discurso que cheira a bafio e peúgas húmidas que defende que cada ser humano deve seguir a sua natureza? Que a única ambição da mulher é ser “mãe”? E “cuidar do marido”, seja lá o que isso signifique? Já agora, porque não defende que nos devemos reger apenas pelas tarefas que nos eram destinadas na Pré-História? É que se seguirmos por aí, acho que mais valia este “sôtor” levantar o rabinho da cadeira e ir caçar mamutes…

A conversa já vai longa e ainda há muito a dizer. No fundo, tenho pena deste homem, e dos que seguem esta mentalidade atrofiada e retorcida. São a prova de que mesmo na sociedade ocidental ainda há um longo caminho a percorrer para que homens e mulheres sejam vistos como iguais.
Só espero que este artigo levante mais polémica que a mudança de cara da “Bridget Jones” ou as curvas da Athayde, porque palavras daquelas, são perigosas, e esquecemo-nos com facilidade que a mulher não é julgada apenas pelos fundamentalistas islâmicos. Pelos vistos ainda temos que queimar muito sutiã para que seja inadmissível ler daquilo num órgão de comunicação social.